Em um encontro histórico de saberes e fazeres, celebrando os 50 anos do evento original, o Salão de Outubro segue ate sábado, 2/11, no Crato Tênis Clube, com centrnas de artistas se apresentando e expondo obras de artes visuais, além de realizarem contação de histórias, cortejo, entre outras atividades de todas as linguagens.
Um grande encontro, ao melhor estilo “tudo ao mesmo tempo agora”, ocupando os salões do Crato Tênis Público em uma convergência memorável e emocionantes de gente da arte, da cultura, de artistas, técnicos, trabalhadores/as da cultura, atuando de forma voluntária, coletiva, com ajuda mútua e muito entusiasmo em integrar a programação e em fazer acontecer o Salão, de forma completamente independente.
Depois da contação de histórias, iniciada ainda à tarde, e do cortejo partindo da Praça da Quadra Bicentenário às 17h, o começo da noite de quarta chegou com muitos encontros no Crato Tênis Clube. Luiz Carlos Salatiel, apresentador do palco principal, foi também um grande anfitrião da primeira das quatro noites do Salão de Outubro 2024.
Os artistas visuais Dodora Guimarães e Siron Franco (que estão participando do Festival Sérvulo Esmeraldo, que acontece também nesta semana, no Crato), integrantes do Instituto Cultural do Cariri, gente de literatura, das artes visuais, de teatro, dança, da cultura popular tradicional, chegava gente de todo lugar, pra fazer o evento juntos, coletivamente, a muitas mãos, linguagens, sensibilidades.
Os espaços internos do clube com pinturas e fotografias de diversos autores e a feira de artesanato nos jardins foram cenário para reencontros, conversas, fotos, saudades expressas em falas e abraços. Alegria da convergência entre integrantes da cena musical de Fortaleza, por exemplo, que se deslocaram ao Cariri para tomar parte no histórico Salão de Outubro dos 50 anos, a convite de Rosemberg Cariry, Caíka Luiz, Carla Karimai, o já citado Salatiel, entre outros. Pachelly e Abidoral estavam por lá, eles que se apresentam em outras noites do evento, assim como Bernardo Neto e Ronaldo Lopes, referência da geração da capital que, como disse Ronaldo em entrevista mais cedo nesta quarta-feira, “tirou o Pirambu das páginas policiais para os cadernos de cultura”.
Depois da banda de música, o pianista, arranjador e diretor musical Ibbertson Nobre foi o primeiro a subir ao palco, com um repertório bem escolhido para favorecer o diálogo com o público no início das apresentações/pocket-shows de três músicas cada. Com duas recriações instrumentais de clássicos nordestinos e uma belíssima releitura da incrível “Pra ninar o Cariri”, de Abidoral Jamacaru, ganhou muitos aplausos. Emocionando logo de saída. Inclusive Abidoral, ali presente com seu violão, na plateia.
Francisco Silvino, representante da família das maestrinas Izaíra e Aparecida e do bardo Davi, foi o próximo a ganhar o palco, com sua gaita na companhia de Ibbertson para mostrar clássicos da bossa nova, também para muitos aplausos. Assim como o jovem acordeonista Simplício, que também optou por uma apresentação instrumental e solo. Com direito a uma releitura para ‘Stairway to heaven”, casando com a fala de Salatiel sobre os anos 70 e o primeiro Salão, uma outra referência a “Eleanor Rigby” e um belo tema de Arismar do Espírito Santo para fechar.
Daniel Medina, de Fortaleza, voltando à capital cearense após longa temporada em São Paulo, foi o artista seguinte a se apresentar, destacando-se pela expressão cênica e pela verve segura e intensa com que convidou o público a viajar junto pela sua “Cancioneta”: “Ai, meu amor, meu amor / Vamos correr perigo / Perigo de amor / Vamos correr comigo / Até onde eu for / Pra depois descansar / E cansar, e cansar do amor”. E encerrou com “Lágrima de índio”, após fazer referência aos povos originários e à alegria e à emoção de estar no Cariri, terra de Abidoral Jamacaru.
Fabricio da Rocha, fortalezense radicado no Crato, ex-integrante do grupo Breculê e atualmente parceiro de Júnior Crato no duo que apresenta o espetáculo “Selestrial”, em homenagem a Hermeto Pascoal, abriu sua participação com um belo e ousado blues, acrescido de sua habilidade harmônica e melódica ao violão. Também chamou atenção ao interpretar a bela “Luz guia”, dele, de Fábio Marques e Melquíades Ferraz. E ao convidar Daniel Medina de volta ao palco, para juntos interpretarem “Epopeia”, uma das mais desafiadoras canções da noite, mantendo o público de olhos e ouvidos apurados para o desafio encarado pelos artistas, reconhecidos ao final do longo e desafiador caminho com muitas palmas.
Pedro Paulo Chagas também mostrou canções autorais, chamando atenção da plateia, especialmente com a terceira composição, antes de receber o pedido para cantar mais uma. E antes de convidar ao palco João Nicodemos, que brilhou na rabeca, em companhia do violão de Pedro Paulo e de um violoncelo bem destacado, com Eliarley. Nicodemos se emocionou ao falar sobre o caráter coletivo da noite e a circunstância tão especial, do encontro de tantos artistas reunidos de forma voluntária. “A noite de hoje é uma daquelas que só depois de muito tempo vamos lembrar e dizer ‘Que incrível o que aconteceu!'”.
E enquanto Di Freitas arregimentava com a equipe técnica coordenada por Vinicius Pinho os instrumentos para sua apresentação, Luiz Carlos Salatiel dividiu com o público reminiscências e considerações sobre os Salões anteriores e a atual edição comemorativa de 50 anos.
“O primeiro Salão foi na Casa de Câmara e Cadeia. Depois na Praça da Sé aconteceram outras edições. Depois o Parque Municipal, quando tinha uma quadra muito simplória. A gente era muito jovem, 15, 16, 17 anos, e permanecia a noite toda, vigiando as obras, cuidando das coisas. Mas a gente queria mesmo era conversar, ficar ali”, revela. “Nessa idade, uma, duas, três noites de sono não tinha problema”, disse, em tom de saudade.
“Nesses momentos celebrados por nós, agora, a gente percebe o quanto nós amadurecemos. Mas não deixamos de fazer que com que a arte pulse de forma vibrante. Como Nicodemos falou, enquanto outros estão fazendo guerra, nós estamos fazendo paz”.
Ajustes feitos na sonorização, Di Freitas sobe ao palco ao lado de um colega na bateria/percussão. “Me chamo Freitas. Sou de Fortaleza e moro no Cariri há 24 anos. Devo muito ao Cariri na minha formação como músico, educador, artista, pessoa… Escolhi aqui mostrar um trabalho que eu faço com a criação de instrumentos que são objetos sonoros. Agrego nesses instrumentos sonoridades que acredito que traduzem pra mim esse local chamado Cariri”, ressaltou.
“‘Lira Nordestina’, uma homenagem à gráfica Lira Nordestina. Homenagem a um violeiro, seu Antônio, que conheci, e foi o ultimo violeiro das feiras do Cariri. Esse instrumento tem uma viola, uma rabeca, um violoncelo e um marimbau. Procuro agregar essas sonoridades”, partilhou com a plateia, antes de mostrar sua musicalidade impressionante, alternando vários recursos e timbres, nas quatro versões do instrumento, destacado também em “A dança do Reio Negro” – “Um maracatu que fiz, homenagem aos Mateus dos Reisados”, utilizado para demonstrar todas as possibilidades do instrumento.
E como se fosse pouco, o mestre Nando Guerreiro arrebatou a plateia e surpreendeu a muitos com sua voz intensa, rascante, espontânea, típica de apresentações de rua, sem sonorização, em que é preciso cantar alto, forte, presente! Nando Guerreiro foi aplaudido de pé pelos que ficaram até o final da primeira noite de shows e saiu do Crato Tênis Clube com novos fãs, após emprestar seu timbre marcante a composições como “Guriatã de coqueiro”, de Severino Melo Carvalho. Fim de uma noite de muitos encontros e de correria para aperfeiçoamentos nessa chegada da nova edição do Salão, que segue até sábado, sempre com entrada franca, no Crato Tênis Clube. Somos do mundo, somos do Cariri.
*Programação musical de quinta-feira, sexta e sábado, sempre a partir de 20h:*
*Na quinta-feira, 31/10*, sobem ao palco Ana Paula Nogueira, Dalwton Moura, Diego Souza, Evânio Soares, Flauberto Gomes, Isaac Cândido, Jord Guedes, JotAlencar, Luciano Brayner, Pachelly Jamacaru, Paulo Memória e Zabumbeiros Cariris.
*Na sexta-feira, 1/11*, apresentam-se Abidoral Jamacaru, Alexsandra Salvador, Cleivan Paiva, Erivan (Sons das Cordas e Ferro), Isis Raylane, João do Crato, Juvar Santos, Lifanco Kariri, Manel de Jardim, Marcos Leonel (Chapadaria), Rafael Di Angelo, Rodrigo Alexandrino, Yruan Brito e Zé Nílton Figueiredo.
*No sábado, 2/11*, sobem ao palco Adeildo de Souza, Ancestralia (Weber dos Anjos, Claudio Mappa), Batista Guitarra, Bernardo Neto, João Batista, João Urano, Junú, Lencker, Leninha Linard, Luiz Carlos Salatiel, Nélio Luna, Ranier, Ronaldo Lopes.
*O Salão de Outubro e a resistência nos anos 70*
Rosemberg Cariry, renomado cineasta, escritor, compositor, pesquisador e militante da cena cultural, que está nos trabalhos de produção do evento, juntamente com parceiros como Clara Karimai, Kaíka Luiz, Luiz Carlos Salatiel, Luciano Brayner e diversos outros, em diferentes linguagens, ressalta, sobre o Salão de Outubro original, que na década de 70, em meio às turbulências que marcaram os anos de opressão política e estética no país, nas diversas regiões brasileiras, artistas conseguiram resistir com novas possibilidades de atuação.
Em 1973, “algo” de novo surge na cena artística da cidade do Crato e do Cariri cearense: o Grupo de Artes Por Exemplo – artistas que se uniram no propósito de formar um núcleo de produtores e divulgadores das expressões da arte local. “Não vamos citar nomes, por serem dezenas e podermos esquecer alguns. A principal marca do Grupo de Artes Por Exemplo foi a diversidade das tendências, que se identificavam no objetivo de projetar a cultura do Cariri cearense, extrapolando o triângulo Crajubar, para o País”, detalha o cineasta, escritor, compositor, pesquisador, articulador e militante da cultura do Ceará para o Brasil.
Contando inicialmente apenas com autores residentes na cidade do Crato, depois incluindo artistas de Juazeiro do Norte e de outras cidades da região, o núcleo destacou-se por realizações importantes, montagens de peças teatrais, filmagem dos primeiros curtas-metragens da cidade e a realização da mostra de arte que ficou conhecida como Salão de Outubro.
O Salão teve a sua primeira edição entre os dias 26/10 e 03/11 de 1974 e se transformou, ao longo dos anos, em um dos eventos culturais mais importantes do Crato e do Cariri, congregando pintores, escritores, poetas, atores, compositores e cineastas em torno da ideia de promover mostras de seus trabalhos e dos seus espetáculos, além do intercâmbio com outros centros artísticos do Nordeste e de outras regiões.
*Do Por Exemplo ao Nação Cariri*
O Grupo de Artes Por Exemplo transformou-se no Nação Cariri — movimento cultural mais amplo, já envolvendo artistas de Fortaleza e de outras capitais brasileiras, editando jornais, revistas, livros, produzindo espetáculos musicais, filmes, discos e outros projetos.
O Nação Cariri continuou junto ao Salão de Outubro, que também foi realizado pelo Folha de Pequi, pela Turma do Parque e por outros grupos, nas décadas de 1970, 1980 e 1990, chegando um dos Salões a ser realizado já no início do século XXI.
O Salão virou uma espécie de propriedade coletiva, em que jovens artistas de diversas gerações iam criando e recriando. O evento foi realizado em diversos espaços da cidade do Crato: Museu Histórico e prédio da Cadeia Pública, Calçadão da Praça Siqueira Campos, Praça da Sé e, durante muito tempo, na Praça do Parque.
*”O Grande Cariri”*
“Uma característica marcante do Salão de Outubro era a opção de reunir culturas e artes, de diversas procedências étnicas, sociais e culturais, naquilo que enxergávamos como sendo o ‘Grande Cariri'”, destaca Rosemberg, ressaltando que a vasta região abrange quase todos os estados nordestinos.
Um espaço em que se fizeram fortes as influências afro-ibero-cariri (caboclas), tendo Juazeiro do Norte como a Grande Meca, onde acontece uma experiência civilizatória original.
“Havia uma concepção bem aberta do conceito de ‘nação’, como um espírito de luta e de resistência, inspirado na Confederação dos Cariri, a chamada ‘Guerra dos Bárbaros’, de 1650 a 1720”, reforça.
*Arte alternativa e cultura popular*
Nas diversas edições do Salão de Outubro, sempre houve, por parte dos artistas, a necessidade de unir a chamada ‘arte2 alternativa’ – mais ligada à juventude nordestina daquela época – à tradição da cultura popular.
O evento pretendia unir através de linguagens diferentes, promovendo um encontro com os símbolos universais e os elementos da cultura local (que também traziam as marcas de muitos povos e culturas do mundo), buscando o surgimento do novo, através da hibridação da tradição regional com as inovações artísticas mais amplas.
Um evento de múltiplas linguagens, reunindo artes plásticas e visuais, cinema, teatro, performances, música e literatura. O grande diferencial era unir artistas já reconhecidos com iniciantes, artistas ditos de vanguarda com artistas da tradição, misturando gêneros e classes sociais, no que se convencionou na época chamar-se de “cultura insubmissa”, ainda com ressonância dos movimentos de “contracultura”.
“Esse era o ‘espírito transmoderno’ do Salão de Outubro naquela época. Houve uma grande produção cultural e artística nesse período e o saldo foi muito positivo para a cultura cearense”, reforça Rosemberg Cariry.
“Esse espírito insubmisso se mantém na contemporaneidade e se renova nos dias 30 e 31 de outubro, 1o e 2 de novembro de 2024, em uma nova edição do Salão, uma festa-celebração dos seus 50 anos”.